segunda-feira, 5 de abril de 2010

A Lisboa dos espiões.

Há uma Lisboa secreta que vai contando a sua história
Há muitas formas de descobrir a capital portuguesa. Uma delas é repisar os caminhos dos agentes secretos que, à sombra da neutralidade portuguesa na II Guerra, fizeram de Lisboa uma plataforma no jogo bélico entre Aliados e o Eixo.

Na cena final do filme Casablanca (Michael Curtiz, 1942), Ilsa Blund (Ingrid Bergman) e o marido Victor Laszlo - um importante membro da resistência checa em fuga ao regime nazi interpretado por Paul Henreid - despedem-se de Rick Blaine (Humphrey Bogart) no aeroporto, para prosseguirem viagem até aos Estados Unidos. Aquele voo levá-los-ia até Lisboa, de onde seguiriam de barco para a América. Já então na neutral cidade de Lisboa campeava a espionagem dos principais beligerantes, a Inglaterra e a Alemanha. Não passou despercebida, e foi muito mais notada e decisiva do que se imagina. Da ficção à realidade, as referências à capital portuguesa são diversas e importantes, na medida em que ali se desenvolveram numerosas acções secretas de informação e contra-informação. Em Lisboa (des)informou-se a Alemanha nazi da localização do desembarque Aliado na Europa que mudaria o curso à guerra, tentou-se a preparação de uma segunda tentativa de assassinato de Hitler, e também onde pretendiam os alemães raptar o duque de Windsor, que - diz-se - nutriria simpatia pela causa alemã. O duque, que esteve alojado no Estoril na residência do banqueiro Espírito Santo, acabou por embarcar para as Baamas, como desejava o chefe do Governo, Winston Churchill.Em Lisboa viviam os espiões num habitat tranquilo e a alta sociedade europeia nela se refugiou ao abrigo do luxo de suítes, algumas delas do melhor que a hotelaria poderia à época oferecer. A revista americana Life assim descrevia o hotel Aviz. 007: Bond ou Popov?Estoril e Cascais faziam parte do roteiro de exilados e espiões, nos melhores hotéis, em palácios da aristocracia portuguesa, ou em jogadas arriscadas no casino. E por aqui vale a pena nova referência cinematográfica. Ian Fleming, escritor que imortalizou o espião James Bond, 007, agente do MI-6, também passou por Lisboa, ao serviço do esforço de guerra dos Aliados, como agente dos serviços secretos navais ingleses. Antes de morrer, admitiu que o seu Bond foi criado à imagem de Dusko Popov, um agente duplo jugoslavo fiel aos britânicos, com nome de código "Triciclo" - alegadamente por se fazer sempre acompanhar de duas belas senhoras. Popov, que mais tarde haveria de ser retratado como o mais extraordinário agente duplo da II Guerra, ao mesmo tempo que jogava fortunas no Casino do Estoril alertava os ingleses dos planos da Gestapo alemã para raptar o duque de Windsor.Outro herói da espionagem foi Juan Pujol de Garcia, catalão, que depois de ter sido obrigado pelo pai a combater pelo regime de Franco na Guerra Civil espanhola decidiu oferecer os seus serviços aos dois blocos beligerantes - Aliados, que o conheceriam por "Garbo", e ao Eixo, que o conheceram pelo nome de código "Arabel". Um e outro, a mesma pessoa, agente duplo, mas também fiel aos serviços britânicos, na convicção que o faria em nome dos princípios da liberdade.Supunham os alemães que "Arabel" desempenhava a sua missão em Londres, que já não podiam sobrevoar ou bombardear, uma vez perdida a supremacia aérea, ali anotando hábitos de vida e a forma como se processava o esforço de guerra. Porém, fazia-o a partir do lisboeta Suíço-Atlântico, hotel com entrada pela Rua da Glória, paredes-meias com a calçada por onde se iça o Elevador da Glória. "Garbo", que se servia dos magazines e dos boletins cinematográficos da época para alimentar a Abwher - a máquina alemã de serviços secretos -, executou na perfeição o papel de duplo agente, contaminando-a com contra-informação, alguma dela do maior relevo, ao ponto de ter ajudado os alemães a decidirem-se, erradamente, pela deslocação dos seus exércitos para a região de Pas de Calais, o ponto mais estreito do canal da Mancha. Mas quando a operação Overlord procedeu ao desembarque de 155 mil homens dos Aliados, fê-lo numa faixa de 100 quilómetros em cinco praias da Normandia, mais a sul. Assistir-se-ia, daí em diante, ao colapso do império nazi.Lisboa como BerlimParte do que se passou em Lisboa ainda se conta pela cidade, muito mais pela rama, ainda que, com rigor histórico, mas inequivocamente com o desejo de despertar curiosidades e a vontade de querer saber mais. É isso que acontece com os passeios Lisbon Walker (www.lisbonwalker.com), que se centra nos passeios a pé. "Os Berlin Walks serviram de inspiração ao nosso modelo, mas os temas foram adaptados à realidade lisboeta, e também o profundo desejo de dar a conhecer a cidade não só aos turistas, mas também aos portugueses", diz Rita Prata, guia e autora de guiões dos percursos. "A base são sempre os factos históricos. A bibliografia é muito diversificada, centrando-se na produção de olisipógrafos, mas também em livros de História e História da Arte de autores reconhecidos e conceituados. A Cidade de Espiões foi escrito e é continuamente actualizado por leituras de uma bibliografia de produção essencialmente internacional, especifica Rita Prata, citando a autobiografia de Dusko Popov - Espionagem e Contra-Espionagem e Nigel West, Operação Garbo, a história pessoal de um dos mais bem sucedidos agentes duplos da II Grande Guerra.Há variada obra publicada em Portugal sobre a espionagem durante o conflito mundial, casos de Espionagem durante a II Guerra Mundial em Portugal, Histórias curiosas de Portugal (Reader"s Digest, 2004), da historiadora Irene Pimentel, distinguida com o Prémio Pessoa em 2007; O Diário Secreto que Salazar não Leu, do jornalista Rui Araújo (Oficina do Livro, 2008); Nathalie Sergueiew: uma agente dupla em Lisboa, do advogado José António Barreiros (O Mundo em Gavetas, 2006).Conta Irene Pimental naquele trabalho que, "sob os olhares atentos dos portugueses e da imprensa, passaram por Lisboa embaixadores dos países beligerantes, a caminho da Europa ocupada ou de Londres e dos EUA". "Através de uma política sinuosa de exploração das contradições entre os dois campos beligerantes, Salazar conseguiu manter uma neutralidade, declarada em 1 de Setembro de 1939. Neutralidade possibilitada tanto pelo Eixo como pelos Aliados, que começou por ser equidistante."Se Portugal mantinha uma aliança secular com a Inglaterra, também vendeu toneladas de volfrâmio, metal duro agora mais conhecido por tungsténio, necessário à Alemanha para o fabrico de material bélico. E também recebia parte do ouro roubado pelos alemães aos países ocupados e às vítimas da guerra. Houve protestos, de qualquer um dos lados, face às actividades colaboracionistas do Governo e dos agentes que operavam em Lisboa, que envolveriam constantes denúncias, de um e outro lados. Isto levou a Polícia de Vigilância e de Defesa do Estado (PVDE, antecessora da PIDE) a dar mais atenção às movimentações dos espiões.A partir de 1943 - lê-se também no trabalho de Irene Pimental -, após o desembarque no Norte de África e a derrota alemã em Estalinegrado, quando o desejo salazarista de uma "paz sem vencedores nem vencidos" se tornou inexequível, instalou-se no regime o medo de que a vitória aliada acarretasse o fim do Estado Novo. Foi nesse período, num contexto interno de agitação social, que a neutralidade portuguesa passou de equidistante a colaborante com os Aliados anglo-americanos. E também porque se temia que os Aliados não permitissem a sobrevivência do império colonial em África. Todavia, antes, Salazar pendia para o lado alemão. Conta Rui Araújo na sua obra que pela morte de Hitler a bandeira portuguesa foi oficialmente colocada a meia haste.Vida sumptuosaCom a guerra aportaram também em Lisboa os refugiados, na sua maioria gente de posses, judeus abastados, os que tinham meios para comprar abrigo na Lisboa neutral. E que melhor poiso do que o hotel Aviz, um sumptuoso palácio nas Picoas, nos terrenos onde posteriormente foram erguidos o hotel Sheraton e o edifício Imaviz. "Era o símbolo da Lisboa romântica dos anos 40 (...), tendo acolhido reis, actores de cinema, grandes escritores e espiões que não dispensavam o conforto e as mordomias de um dos mais requintados hotéis de Lisboa", lê-se na nota de imprensa do novo Aviz, aberto em 2005 na Duque de Palmela. Com o Palace Hotel do Bussaco, eram os hotéis de luxo do país, compreendendo-se assim como foi casa de Calouste Gulbenkian durante os 13 anos que ali permaneceu, desde 1942 até à data da sua morte, em 1955. Conta Marina Tavares Dias, em Lisboa Desaparecida (Quimera, 1987), que o próprio Gulbenkian acorria frequentemente às dívidas do hotel. O tempo da guerra era de crise, embora uma diária no Aviz custasse 500 escudos, quando os quatro restantes de primeira classe - Palace, Borges, Tivoli e o Vitória - não exigiam mais que 140 escudos. O luxo era evidente. Conta-se que o realizador e produtor cinematográfico norte-americano Cecil B. de Mille acreditava que na casa de banho da suíte presidencial do Aviz poderia muito bem filmar-se uma superprodução. Outros distintos hóspedes das suites - e estão referenciados Frank Sinatra, Ava Gardner, Eva Perón, Maria Callas, ou os ex-reis Carol da Roménia, D. Juan de Espanha e Humberto da Itália - conviviam com os mais célebres espiões. Popov, o "Triciclo" também ali passou. Descendo o então Passeio Público da Avenida da Liberdade, muitos outros acoitavam os agentes dos países beligerantes, fossem o Tivoli, o Vitória (hoje o Centro de Trabalho do PCP), o Suíço-Atlântico, o Duas Nações, o Metrópole, o Palace, nos Restauradores.Este último, com átrio de cobertura translúcida em vitral, de inegável deslumbre, está colado à estação ferroviária do Rossio, e diz-se que um corredor no 4.º andar o ligava à plataforma da estação. Ambos são do arquitecto José Luís Monteiro, e terá sido por ali que, de forma incógnita, escapando ao controlo de identidades da PVDE, importantes personalidades, espiões, refugiados, davam entrada em Lisboa, directamente para o hotel ou para o acesso ao Novo Mundo a que Casablanca fazia referência.Reis sem tronoTambém na Costa do Estoril, e quase colado ao Casino está o Palácio, com grande história na vida da espionagem daquele tempo. Uma nota de introdução ao Espaço Exílio, inaugurado em 1999 no Estoril, diz que, "com particular ênfase para o período da II Guerra Mundial, estadistas, reis sem trono, escritores, artistas, pensadores, espiões, homens de negócios, mas também milhares de pessoas anónimas encontraram um local de refúgio no eixo Cascais-Estoril, pontuado por uma significativa rede de hotéis e pensões e de toda a espécie de recursos afectos a uma estância balnear". No Estoril, os alemães escolheram o Hotel Atlântico, o Grande Hotel do Monte Estoril e o Hotel do Parque, enquanto o Grande Hotel da Itália, no Monte Estoril, e o Hotel Palácio eram os preferidos dos Aliados. Mas todos se cruzavam no Inglaterra, no Paris, espiões ou refugiados.Destes, alguns menos afortunados chegavam a Lisboa em grande número, pelos ofícios do "Schindler português", Aristides de Sousa Mendes, cônsul de Portugal em Bordéus. Em Lisboa, olhando do Terreiro do Paço para o arco da Rua Augusta, avista-se a estátua de Viriato, o guerreiro lusitano. Qual a relação com a Lisboa dos espiões? Nenhuma, a não ser que foi vítima de outro tipo de espionagem - a traição -, morto por companheiros de armas que o assassinaram enquanto dormia. Uma vil traição que haveria de recompensar aqueles pelos romanos com a morte. É dito, também, pelos passeios pela Lisboa dos espiões, que quem teve a culpa disto tudo foi Sun Tzu, mestre chinês da estratégia militar, não tivesse descrito na obra A Arte da Guerra que não há guerra sem vitória, nem vitória sem espiões.Conquistar os muitos segredos que Lisboa ainda encerra pode estar à distância de um passeio.
(in Público)

1 comentário:

Bic Laranja disse...

Um bom artigo. Obrigado pelo treslado em pública forma. Cumpts.